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Perícia sob suspeita e Justiça sob pressão: os nebulosos bastidores de um conflito

Laudo questionado, ausência de transparência e intimidação de oficiais revelam cenário preocupante em disputa de terras no interior do Mato Grosso, com o nome do lobista preso Andreson Gonçalves rondando todo o processo

O caso da Fazenda Vitória do Araguaia, localizada em Porto Alegre do Norte (MT), vem se desdobrando em capítulos cada vez mais nebulosos. O conflito fundiário extrapolou os limites da propriedade e alcançou esferas sensíveis do Judiciário, da segurança pública e da ética. No centro do imbróglio está o lobista Andreson Gonçalves, preso no final de novembro de 2023, apontado como articulador de uma complexa rede de interesses em torno das terras em disputa.

Nesta terceira reportagem sobre o caso, revelamos como uma perícia judicial que poderia esclarecer contornos da situação acabou contribuindo para mais incertezas. O laudo, elaborado pelo perito Gabriel Mancilla e apresentado em 28 de abril, possui 279 páginas, mas é alvo de duras críticas por falhas metodológicas, omissões, ausência de objetividade e até de organização.

Enquanto isso, a cidade de Porto Alegre do Norte vive um clima de tensão. Um dos oficiais de Justiça responsáveis pelo caso deixou a região, enquanto outro passou a viver recluso, quase como um prisioneiro em sua própria casa. De toda forma, há suspeitas de que os patrimônios de ambos tenham tido recentes e significativos incrementos.

Andreson Gonçalves, no centro de todo o quebra-cabeça

Por sua vez, Andreson Gonçalves segue detido, sob custódia do Estado, usufruindo de cuidados médicos e alimentares justificados por uma cirurgia realizada em 2021. Seu nome, contudo, não é sequer citado no laudo pericial – mesmo sendo ele o beneficiado por decisão liminar sobre a posse das terras. A omissão levanta graves dúvidas sobre a isenção e a completude do trabalho técnico.

Perícia sob questionamento

O laudo pericial de Mancilla apresenta falhas consideradas graves por especialistas. Em vez de se concentrar em elementos característicos de uma ação possessória — como identificação de ocupantes, tempo e origem das posses —, o documento baseou-se majoritariamente em imagens aéreas e documentos cartoriais. As visitas de campo, essenciais em casos desse tipo, foram tratadas de forma secundária. Ou mesmo terciária.

No item 14.8, por exemplo, é admitida a presença de ocupantes na área litigiosa às margens do Rio Xavantinho. No entanto, o laudo afirma que não foi possível mensurar a área ocupada por cada um, tampouco identificar as posses ou seus titulares, sob justificativa de falta de orçamento, autorização judicial e complexidade técnica.

“Durante a vistoria de campo e a análise das imagens de satélite, foram identificados vários ocupantes na margem esquerda do Rio Xavantinho, no interior da área objeto da presente lide”, traz o laudo.

“Contudo, a quantificação precisa da área ocupada por cada um dos ocupantes e a caracterização individualizada da extensão e da origem de suas posses não pôde ser realizada no âmbito desta perícia, considerando: a complexidade espacial da ocupação fragmentada ao longo do tempo; a necessidade de levantamentos específicos de engenharia, com medições individualizadas, georreferenciamento detalhado e levantamento planimétrico cadastral a ausência de previsão orçamentária e de autorização judicial para a execução de tais serviços complementares no presente trabalho pericial”, continua.

Em entrevista, o advogado Néri Perin, de Brasília, fala sobre a correta condução de uma perícia. “O perito deve tentar identificar os ocupantes, a área efetivamente invadida, a relevância social das ocupações e qualificar os envolvidos, a fim de permitir ao juiz uma decisão eficaz”, afirma.

Outro ponto crítico foi a ausência de convocação dos assistentes técnicos. O engenheiro Nilo Shirozono, indicado para acompanhar os trabalhos, sequer foi chamado, contrariando o princípio da transparência. “É dever do perito comunicar às partes os dias e horários das diligências, permitindo a participação dos advogados e assistentes técnicos. Isso dá segurança jurídica ao processo”, reforça Perin.

Parecer técnico divergente expõe falhas

As lacunas do laudo motivaram a produção de um Parecer Técnico Parcialmente Divergente, assinado por Shirozono. No documento, ele aponta que o trabalho de Mancilla é “imprestável”, “omisso” e “genérico”, deixando de abordar elementos fundamentais como: Quantificação e qualificação dos réus; Benfeitorias retiradas; Parcelamento clandestino da área; Crimes ambientais; Entrevistas e fatos possessórios; Análises de matrículas e sobreposições com reserva indígena e Resposta aos quesitos técnicos.

Shirozono vai além, sugerindo até possível intenção de confundir: “A desorganização do laudo, juntado de forma não sequencial, parece proposital”. Segundo ele, o perito ultrapassou os limites da ação possessória ao realizar análise dominial, o que é vedado nesse tipo de processo.

Outro ponto gravíssimo, segundo o parecer, foi a omissão de um “fato novo”: a autora da ação já teria sido reintegrada em uma área de mais de 52 mil hectares — praticamente o dobro dos 27 mil hectares que legalmente possui, considerando sua reserva legal. A discrepância teria resultado em prejuízo a proprietários legítimos, que foram afetados por decisões baseadas em informações imprecisas.

Sem resposta à sociedade

Além das falhas técnicas, o parecer aponta que o perito ignorou completamente a decisão judicial que determinava a distinção entre invasores originários, sucessores e terceiros que entraram na posse durante o litígio. Essa omissão compromete a execução da ordem de reintegração e a responsabilização civil dos envolvidos.

A ausência do nome de Andreson Gonçalves no documento também causa estranhamento. Detentor de uma liminar que impacta diretamente o processo, ele não é mencionado nem contextualizado — o que reforça a sensação de um laudo parcial, desconectado da realidade e omisso em relação ao que realmente se passa na Fazenda Vitória do Araguaia.

Um laudo que mais oculta do que revela

Com base nas evidências reunidas, especialistas e envolvidos no caso questionam abertamente a validade da perícia. O documento, que deveria servir como norte técnico para o Judiciário, transformou-se em mais um elemento de incerteza. A ausência de isenção, de dados objetivos e de transparência compromete não apenas o resultado do processo, mas também a confiança na Justiça.

Enquanto isso, o nome de Andreson Gonçalves — ausente do laudo, mas onipresente nas entrelinhas — continua pairando sobre a disputa fundiária como uma sombra difícil de dissipar.

O quebra-cabeça, por ora, segue incompleto sobre a mesa.

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